Curiosidade feminina II

dando sequência à série de entrevistas que o Duas por Todas pretende fazer com blogueiros, desta vez a vítima escolhida é o jornalista, professor, radialista e escritor Márcio Almeida Júnior, senhor e legítimo proprietário do excelente blogue Viver e Contar.

muito se diz a respeito da curiosidade feminina. e, de fato, nossa curiosidade é inesgotável, especialmente quando se relaciona à nossa produção e à maneira como somos vistas pelo universo masculino. afinal, como o homem vê a mulher que se dedica às letras?

diz aí, Professor.

[por mariza lourenço]




nós duas e Ele





Duas por Todas: A voz poética feminina é mais visceral que a masculina, em sua opinião?

Márcio Almeida Júnior: Eu diria que ela é diferente, e uma das principais diferenças está não tanto no caráter visceral, quanto no tom confessional. As mulheres tendem a ser mais confessionais que os homens em poesia, tendem a aprofundar suas confissões num nível a que os homens têm mais dificuldade de descer. Isso não impede, obviamente, a existência de vozes poéticas masculinas em que o tom confessional prevalece. Na poesia feminina contemporânea, por exemplo, o que vejo é que o tom confessional pode assumir a visceralidade, no sentido denotativo do termo, relacionado às experiências carnais, ou manter-se no nível dos sentimentos. Em qualquer um dos casos, porém, o confessionalismo feminino tende a ser naturalmente mais profundo que o do homem. Por outro lado, o erotismo poético feminino, uma das demonstrações dessa visceralidade, é muito diferente do masculino. A razão, acredito, está fora da literatura e se encontra nas diferenças do erotismo propriamente dito. Desconfio de que o erotismo feminino se processa dentro de um contexto mais amplo, ao contrário do masculino, que, com raras exceções, se esgota no instante da conjunção carnal. No erotismo feminino, e isso fica evidente na literatura, há uma linha contínua e aspiralada que envolve o antes, o agora e o depois. Mesmo a poesia erótica feminina mais direta e mais crua está quase sempre, se a observarmos bem, ligada a essa visão de mundo. Sem esquecer, claro, que a gama de referências eróticas é muito maior nas mulheres do que nos homens, o que equivale a dizer que o erotismo literário feminino vai muito além das genitálias.


DT: A que você atribui a tendência confessional da mulher escritora? você acredita que a mulher, ao escrever, tenha menos reservas do que o homem?

MAJ: Creio que sim. Penso, entretanto, que a resposta a essa pergunta aponte para fatores que estão num nível não literário. Esses fatores estão relacionados ao feminino, entendido como o conjunto de características que compõem a estruturação psico-afetiva das mulheres e que a diferenciam dos homens. É evidente que as mulheres falam com menos reservas sobre sentimentos e afetividade, matéria-prima de boa parte da poesia e prosa confessionais que se vê hoje na literatura feminina. Essa evidência se encontra, inclusive, no fato, amplamente conhecido e muito citado, de que as mulheres, ao contrário dos homens, se dispõem com mais frequência a discutir relacionamentos, o que não deixa de ser um exercício de falar sem reservas. Os homens escritores, mesmo quando discutem sentimentos, não o fazem sem reservas. Vencê-las custa-lhes mais do que às mulheres.


DT: Márcio, em algumas oportunidades, você já manifestou sua predileção pela poesia da americana Emily Dickinson. Como explica essa predileção?

MAJ: Para explicar a minha predileção pela obra de Emily Dickinson, preciso antes fazer um esclarecimento prévio. Mesmo rejeitando estereótipos, por serem empobrecedores da leitura literária e incompatíveis com uma visão minimamente crítica, acredito na existência de uma voz poética masculina e de uma voz poética feminina. Isso não significa que os homens não possam apresentar características femininas e vice-versa. Significa que há certas predominâncias e recorrências na produção literária, as quais, uma vez estabelecidas, configuram uma voz masculina ou feminina. Nesse contexto, até o século XIX, no Ocidente, a maior parte dos experimentos literários formais foi feita por homens, enquanto às mulheres coube, em geral, o papel de alargar o espectro de possibilidades de conteúdo, isto é, ajudar a ampliar os temas da literatura e, principalmente, o tipo de abordagem deles. As transgressões literárias femininas foram, na maior parte das vezes, transgressões de conteúdo. O caso de Emily Dickinson torna-se peculiar quando se leva isso em conta. O que ela fez foi tomar o código masculino de experimentalismo formal e lhe dar um conteúdo feminino. Ela jogava nos dois campos, por assim dizer. Conseguiu dominar ambas as vozes, a feminina e a masculina, porque as olhava de cima, de um ponto de vista que me parece ter sido atingido quase milagrosamente, levando-se em conta o contexto do protestantismo puritano de meados do século XIX nos Estados Unidos, com papéis rígidos estabelecidos para a sensibilidade literária masculina e feminina. Emily Dickinson faz experimentalismo formal e, ao mesmo tempo, trata os temas típicos da visão de mundo feminina.


DT: Qual(is) outras poeta(s)/poetisa(s)/escritora(s), você mencionaria como referência de beleza e transgressão poética?

MAJ: Sou leitor assíduo da produção feminina. E é grande a galeria de vozes femininas na literatura do Ocidente que leio e releio sempre com renovado prazer. Deixarei de lado aqui as autoras contemporâneas, que são muitas e poderiam não ser todas lembradas numa enumeração feita ao correr da pena. Entre as vozes femininas que leio sempre, destaco:

* Safo, uma matriz do erotismo feminino na poesia do Ocidente;
* Mariana Alcoforado, autora das mais arrebatadas cartas de amor já escritas em português;
* Jane Austen e Irmãs Bronte, que plasmaram o Romantismo inglês;
* George Elliot, uma voz marcante no século XIX inglês;
* George Sand, presença decisiva no romantismo francês;
* Emily Dickinson, a mais importante voz poética feminina dos EUA;
* Florbela Espanca, o mais arrebatado coração poético de Portugal;
* Helena Morley, a inventora do primeiro diário literário moderno em língua portuguesa;
* Anna Akhmatova, a grande voz lírica da Rússia;
* Virginia Woolf, a inventora de sutilezas femininas em língua inglesa;
* Cecília Meirelles, cultora de uma poética completa, que vai do lírico ao épico;
* Simone de Beauvoir, iniciadora de um novo olhar sobre o feminino na França;
* Marguerite Yourcenar, uma mestra no romance histórico com visão feminina;
* Clarice Lispector, autora de uma obra que alargou e aprofundou a prosa brasileira;
* Ana Cristina César, um farol em sua geração


DT: A poesia feminina é triste, Professor?

MAJ: Não em essência. Mas, em se tratando de autoras que adotam um tom confessional em produções que tratam de camadas mais profundas do sentimento, a poesia pode tender à melancolia. É o que se vê com frequência, mesmo na poesia erótica feminina, que quase nunca é apenas de celebração da carne, abrindo-se também a um pathos da afetividade. Não me julgo capaz de analisar as causas dessa "tristeza". Gerações de pensadores têm tentado entender as mulheres, e alguns deles, como Freud, numa afirmação muito caricaturizada e nem sempre contextualizada e bem entendida, reconheceram ser difícil para os homens entendê-las. Tenho apenas um palpite: mulheres e homens são naturalmente complementares em termos de sentimentos, mas a estruturação psíquica feminina é muitíssimo mais complexa e sutil do que a masculina, que, por ser mais direta, mais lógica, se organiza de modo diverso. Daí que realmente muito poucos homens entendam as sutilezas femininas e, por conseguinte, a poesia feminina e o pathos de tristeza, que é um de seus leit-motivs.


DT: Em suas crônicas você permite que seu "eu lírico" se manifeste todas as vezes em que sente vontade? (muitos risos)

MAJ: Em primeiro lugar, quero dizer que está contida na pergunta a idéia de que a crônica pode ter um "eu" lírico, conceito mais usual em poesia. Essa idéia é sofisticada, em termos de teoria literária. Está baseada na iconsideração, feita por alguns autores, de que aquele "eu" que narra fatos é, ele próprio, uma criação literária. Concordo com essa idéia. A crônica, numa de suas vertentes mais importantes no Brasil — vertente esta que tem entre seus expoentes um Rubem Braga, com certeza o maior cronista lírico que tivemos —, tende ao lirismo. O que é o mesmo que dizer que esse tipo de crônica tende a poetizar o cotidiano, que é o assunto do qual se ocupa a crônica. Aposto na idéia de que é o "eu" lírico que aumenta a densidade literária da crônica. Sem a manifestação desse "eu", a crônica tende ou ao conto, onde predomina a função narrativa ficcional, ou ao artigo, em que prevalece a apresentação e discussão de idéias. Há ocasiões em que isso se apresenta misturado, como nos textos que Drummond, outro gigante da crônica, produziu a partir dos anos 50 do século passado. Mas a especificidade da crônica, acredito, está nesse discorrer lírico sobre o cotidiano. Nesse sentido, e aqui está o essencial do ofício de cronista, a crônica é uma pedagogia poética da vivência. O cronista quando bem sucedido, ensina a olhar o mundo com outros olhos. Assim como o poeta, que olha para o cisco e vê a sua dimensão estética, a exemplo de um Manoel de Barros, o cronista olha a chuva e discorre sobre ela e sobre o que ela lhe causa em termos de impressões, sentimentos, idéias. A estrutura da crônica está, portanto, mais próxima da poesia do que do conto ou do artigo. Do ponto de vista formal, e essa é uma das afirmações que tenho feito em minhas oficinas literárias, está próxima também de algumas formas musicais, como o jazz e algumas espécies da música clássica. Nessas espécies de música clássica, como no jazz, a estrutura de desenvolvimento é: tema + variações/improvisações + fechamento. É evidente que essa foi a forma de composição empregada por um Rubem Braga em vários de seus textos. Feito esse preâmbulo crítico, posso agora responder à pergunta e dizer que o meu "eu" lírico é assumido conscientemente em minhas crônicas. Mas eu sou mineiro, sou do interior, padeço de sertanismo crônico, de incapacidade não menos crônica de assimilar a desinibição natural das grandes metrópoles. O meu "eu" lírico, embora eu não o contenha, é de mineiro: isso significa que ele tende a falar menos e a sugerir mais. Mas essa é uma visão pessoal. Não consigo abandonar o vício de falar nas entrelinhas.


DT: Há, em seus textos, uma forte tendência à interiorização do ser, à busca dos elementos essenciais que justifiquem sua presença no mundo. O ato de viver poderia ser menos complicado, em sua opinião?

MAJ: Quando publiquei meu segundo livro, "Crônicas Quixotescas", com produções aparecidas em mídia impressa, eu me dei conta de que venho, inconscientemente, fazendo um longo exercício de meditação ao escrever. No começo, cheguei a pensar que eu me repetia. Depois me dei conta de que essa é a minha forma de olhar o mundo. Está enraizado em mim o hábito de olhar os pássaros e pensar na liberdade, de ver borboletas e de raciocinar sobre a leveza, de sentir as mudanças do tempo e de pensar nas estações da nossa existência. Quando me dou conta, já dei um pulo do sensível para o supra-sensível. Essa tendência à interiorização é, na realidade, uma tendência à reflexão. Acho que vem daí o meu gosto pelo montanhismo e o trekking, modalidades esportivas em que somos levados a confrontar a natureza, a exterior e a interior. Minhas crônicas nascem dessa mania de interiorização, e a maioria delas é escrita mentalmente enquanto caminho. Eu escrevo mentalmente enquanto estou caminhando. Filho, neto e bisneto de fazendeiros, costumo passar longas horas andando sozinho no campo. Acho que minhas crônicas são o registro de meu andar no campo, na cidade, na vida. Caminhando no campo, eu sou levado a repensar que a natureza humana, afinal de contas, não precisa de tantas coisas sofisticadas quanto nós, civilizados, pensamos. E concluo, sim, que o ato de viver pode ser menos complicado.


DT: Márcio, além de Jornalista, Professor e Radialista, você ainda encontra tempo para se dedicar a causas e projetos sociais. Como acha que a sociedade pode contribuir de forma efetiva para a minimização de tantas mazelas sociais?

MAJ: No estágio atual da civilização, a sociedade civil só pode agir diretamente de modo tópico, em iniciativas específicas, pois cabe ao Estado o papel de conduzir as políticas públicas de maior abrangência. Mas essas iniciativas não são menos importantes, quando tomadas de forma organizada, com objetivos e métodos bem definidos. Além do mais, a sociedade civil pode interferir nas políticas públicas, na medida em que lhe cabe o fundamental papel de forçar, pelo voto e outras formas de manifestação, a vontade política, que é pequena e faz com que continuem pequenos os resultados na luta contra as nossas misérias sociais. Meu pequeno trabalho social, feito na região em que moro e atuo como educador, empresário e profissional de imprensa, diz respeito à educação complementar de crianças carentes e, num nível mais básico, à busca de assegurar meios para que algumas delas possam se alimentar melhor. Faço isso em parceria com várias entidades. Paralelamente, tenho participação na defesa dos direitos dos portadores de necessidades especiais (tenho um irmão cadeirante, que me sensibilizou para isso) e das mulheres, por meio do estímulo à criação de conselhos e órgãos de defesa. Mas é um esforço conjunto o que faço, ou seja, minha parcela de contribuição é apenas uma gota de água no oceano de pessoas que se dedicam a essas causas. Pelo trabalho com as crianças, tenho especial predileção.


DT: E para terminar, Márcio, que tal um bate-bola com algumas palavras recorrentes em seus textos?

MAJ:
Lua: Sou assumidamente aluado. A Lua é, para mim, um arquétipo, um símbolo permanente. Andar à luz da Lua é das experiências mais gratificantes que me foi dado experimentar neste mundo.
Estrela: Sou astrônomo amador. Faço observações desde a infância. É difícil saber o que me fascina mais: a beleza das estrelas ou a curiosidade científica de pesquisar suas características. O céu estrelado é a imagem mais bonita deste mundo, na minha opinião. Talvez porque não seja deste mundo.
Criança: Não adiantaria nada eu tentar ocultar. Há uma criança dentro de mim que olha tatus-bolinhas, observa arco-íris e gosta de andar na chuva e de dar comida aos pássaros. Emprego os mais sérios e maduros de meus esforços para não deixar de todo de ser criança.
Montanhas: Como a Lua, são mais do que montes de terra. Subi-las, dificuldade por dificuldade, até chegar ao topo, vai além de fazer exercício e tem alguma coisa de religioso para mim. Ouvir o vento que sopra no alto dos morros, de onde se vê todo o redor, é uma experiência mística.
Literatura: Para quem escreve e quem lê, uma experiência-limite, que desafia o tempo, o lugar e projeta autor e leitor no infinito a partir do estético, do lúdico, do lírico.



Raio X



Márcio Almeida Júnior (Oliveira-MG), 36 anos, é Jornalista, Radialista, Editor do Jornal Uai! e Professor Universitário de Língua Latina, Literaturas de Língua Inglesa e Redação Avançada. Escreveu os livros "Crônicas Quixotescas" e "ABC da Pesquisa". Na Internet pode ser lido em seu blogue Viver e Contar e na Germina - Revista de Literatura e Arte.


o Professor Márcio, como de hábito, foi de uma gentileza ímpar ao nos conceder esta entrevista, além de cronista sensível, é um grande amigo, ainda que sua mineiridade interiorana faça-o parecer um homem sério demais, é daquelas pessoas bem-humoradas e dispostas a colaborar com causas nobres e boas.

obrigada, Márcio, de coração.

mariza e layla.



uma crônica Dele



imagem medioimages/photodisc

A psicanálise do cisco e dos restos de bolo na mesa



Tenho inveja de garçons e varredores. Na adolescência, quando descobri que a alma do escrever mora nos olhos e ouvidos, e não nos dedos e artifícios de estilo, passei a achar que esses dois ofícios têm muito a ensinar. Por respeito a si mesmo e aos leitores, ninguém que se disponha a colocar idéias na página em branco deveria fazê-lo sem antes passar por uma espécie de estágio probatório com eles.

Garçons e varredores, talvez por força do trabalho que exercem, estão imunes ao vírus do excesso de referência e atenção a si mesmos. É desse vírus a culpa pela impiedosa epidemia que devasta parte considerável da literatura e que em nossa época tem tornado tetraplégicos muitos talentos literários promissores, incapacitando-os de perceber as coisas do mundo como uma grande provocação da curiosidade.

Esse quadro patológico não atinge garçons e varredores. Nos restaurantes, lanchonetes ou bares de qualquer nível, nos aeroportos e terminais rodoviários, eles circulam com a vitalidade de quem não está afogado nas próprias profundezas. Estão atentos aos outros, enquanto aqueles a quem servem em geral têm olhos e ouvidos apenas para verem e ouvirem a si mesmos, num espetáculo infindável de autocontemplação.

Com garços e varredores, é diferente. Eles olham pela janela da vida e ouvem o seu burburinho. Só garçons e varredores descobrem com facilidade a diferença entre a birra que as crianças dão quando querem fazer algo e não são autorizadas e a birra que dão para não fazer o que lhes pedem. Só eles distinguem à primeira vista de qual dos cinco tipos de choro de mulher se trata em cada caso.

Sei que outras profissões permitem observar pessoas, mas não como os garçons e varredores. Médicos e policiais também fazem observações por dever de ofício, mas têm autoridade sobre as pessoas. E a autoridade, quando brilha nos olhos, estrangula, estupra e esquarteja a curiosidade. Com autoridade é impossível olhar o desenho geométrico do cisco no chão e fazer a psicanálise dos restos de bolo na mesa.

Autoridades não percebem que as pessoas se dividem entre as que brincam com as tampinhas de refrigerante e as que não brincam. Não sabem que canudinhos e palitos torcidos ou quebrados são quase um tratado sobre a alma humana, cada tipo de torção ou quebra correspondendo a uma disposição de espírito. Têm dificuldade para descobrir que a areia dentro do cinzeiro forma a imagem de uma montanha.

Para garçons e varredores, tudo isso é visível. É claro. Ao voltarem para casa depois de um turno de trabalho, eles podem avaliar o quanto o mundo é variado, complexo e profundo. Sem solenidade, sem alarde, com a nobreza de quem se sente bem servindo, eles atingem a capacidade de viver e aprender, esse fruto abençoado reservado aos quem têm a coragem e a humildade de não se julgar o centro do universo.